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Terror Nas Alturas
revisão Brenda & Lucius
editoração Ferdinando Blun
conto

capa e edição
hh


Solano abriu o bar muito cedo hoje. Os escombros das torres ainda fumegavam. O World Trade Center não existe mais. Abriu o bar as duas da tarde. Era quarta-feira. Nunca fez isso. Nunca abria antes da noite cair. Não conseguiu ficar em casa como queriam a mulher e o cunhado.  

Para sua surpresa, pouco depois de
subir as portas e receber na cara a baforada etílica do bar, apareceram os quatro velhos amigos e fregueses que habitualmente jamais apareceriam naquela hora. Olhos vermelhos, mãos enfiadas no bolso, ombros caídos. Parecem uns velhos, disse Solano, um traço forçado de riso na bochecha. 
— Vai ser a Terceira Guerra Mundial, tenho certeza... – disse Nestor. Jogou os braços no balcão. Os outros levantaram o queixo na direção da TV na mesma táboa da estante entre garrafas, retratos de jogadores e escudos de clubes. Está desligada.
Solano apertou o controle, veio o canal da CNN em espanhol.
— Minha neta viu nas redes... disseram que a CNN mostrou imagens antigas no Líbano. – disse um deles olhando o fundo do copo. — Gente comemorando nas ruas... dando tiros pro alto, buzinando... tudo fakenews!
— Eram imagens antigas?
— Uma espécie de fraude. Mostrar o povo comemorando a explosão dos prédios enquanto na verdade podia ser de outra comemoração de qualquer coisa anos atrás...
— E precisava? – Solano deu de ombros. — Que idiota precisaria colocar no ar gente falsa aplaudindo aquilo? pra quê? toda essa desgraça não basta? isto aí na TV não chega?? – as câmeras varrem as ruas, os escombros. Poeiras, máscaras, sirenes, gente correndo. Cadáveres ensacados.
— Isso foi na Al Jazeera. Essa TV é comandada por terroristas! – disse Nestor.

A repórter mexicana dá números à tragédia. Um rosto lindo, moreno, dentes perfeitos, a voz embargada.
Estão falando em oito mil mortos ou mais, Nestor curvou o corpo sobre o ombro de Jairo. Virou a cerveja, limpou a boca. Pode chegar a vinte mil, arfou bem junto ao ouvido do amigo, tomou outro trago.
   
Um homem calado penetrou o bar. Roupas escuras, barba branca. Um velho professor de história que desde a gravidez solteira de suas duas netas perdera o apetite pela prosa. Está calado desde então, desgostoso da vida. Sentou-se no fundo do balcão, pediu ‘o de sempre’, fixou a TV. Você também madrugou? puxou assunto Solano, a resposta foi um fiapo de olhar com o mínimo movimento de pescoço. Voltou-se para a televisão, encerrou o assunto.
— Meu Deus... – gemeu Elias. — Jamais pensei viver isso nos meus 70 anos! – Cotovelos no balcão, mãos descendo pela cabeça, olhos apertados.
Quê isso homem? sorriu Solano atrás do balcão, você é um ex-combatente! você lutou na Itália... e sua filha está em Boston não em Nova York.
— Não, não. Não estou preocupado com ela. Aquela danada sempre soube se cuidar. Eu é que estou fora de combate... – suspirou o velho.
— Rhá! e o que você faria se fosse uns 30 anos mais novo?
— Trinta? talvez 60 mais novo!! rha rha!

O bar iluminou-se um pouco, seis velhos pela hora da morte. Somos responsáveis por isso! bramiu Orlando, na curva oposta do balcão, longe dos outros velhos. Ele é o mais novo. Quase 60. Malhado, corpo esbelto, bigodes tratados, boêmio. Talvez ali, o único que ainda transava.
— Não atrapalha, – disse Nestor —  deixe o homem dizer o que faria se fosse jovem.
Elias mirou a TV, a bela face da repórter, os escombros ao fundo, as palavras ‘CNN Vivo’.
— Na minha mesa, tomando café ontem eu vi ao vivo milhares de pessoas morrerem. Pode imaginar? – olhou nos olhos de Solano. — Um prédio em chamas, o outro ao lado em pé. As pessoas ainda pensavam se desciam ou ficavam... todas estavam trabalhando. – um soluço. — Meu Deus... outro avião passa, um avião negro, uma curva fechada... – os olhos de Elias se encharcam, a voz falha. —... oh meu Deus, eu pensei que ele ia passar direto pelo prédio. Pensei ‘que cara irresponsável!’. – Nesta hora ele chora. — ‘Que piloto é esse?’ Sabe? até o homem da câmera achou que o avião ia passar direto... a câmera foi... – e terminou a frase planando a mão no ar levando-a ao infinito. —... e depois voltou para filmar a explosão. A imagem tremeu. O cara atrás da câmera também tremeu, tomou um susto! – Calou-se, virou o copo. Silêncio. — E isso foi ontem... mas hoje, na hora do café, eu vejo o rosto do homem que mandou fazer aquilo... O rosto do homem... meu Deus! Eu queria ver um demônio, um Adolf Hitler esbravejando cheio de ódio com os olhos esbugalhados e saliva no canto da boca, um louco espumando de raiva... mas, o que foi que eu vi? – Elias sempre um homem equilibrado, sem grandes problemas na vida, está abalado, todos o escutam. — Vocês sabem o rosto que vi? – os velhos amigos pareceram chegar milímetros mais perto. — Eu vi... um homem de olhar doce e palavras calmas... falava como se fosse santo. – engoliu seco, apertou os olhos. Deu-se conta das lágrimas, secou-as rapidamente num único golpe com as costas da mão. — Aquele filho-da-puta podia ter matado minha filha, matou milhares... e eu... eu senti pena dele... – não pôde conter as lágrimas, ruíram como as torres. Elias debruçou-se no bar. Solano quase toca em seus ombros. Seria um consolo e um sacrilégio. Quem ousaria consolar um homem que a todos sempre consolava? Porém Orlando quebrou o clima. Quê isso? você sentiu simpatias por Osama Bin Laden? gargalhou impiedoso e forçado, você tá caduco? esse homem é um serial killer! um sanguinário!!
Oh, pega leve! fique calmo, amansou as coisas o velho Nestor. Foi quem pousou a mão sobre os ombros de Elias. Há mais aí que um simples rosto, não é meu chapa?
             — É a teoria do limite...
— Oh, não, de novo não! – afastou-se Orlando, mas Jairo quieto até agora, insistiu. — É a Grande Teoria do Limite sim! – levantou-se do banco, chegou bem junto a Elias ainda curvado e Nestor que rodopiava o fundo do copo. — Eu queria ter esta ingenuidade...    
— Se somar nossas idades vai dá mais de 400 anos e tem gente nos chamando de ingênuos... Ahh!
— Se eu tivesse menos 30 – disse Elias, fôlego recuperado. – eu lutaria nesta guerra...
— Que guerra, rapaz! – Jairo, os dentes cerrados, fez um riso sem riso. — Acha que existe alguma praia para invadir como disse lá o Bushinho? Você se lembra das praias da Normandia? O Famoso Dia D! Você estava lá! – cerrou os punhos. — Não amigo... nenhuma praia pra invadir, nenhuma floresta pra jogar napalm, nenhum soldado de verdade pra combater, só um monte de merda com molambos amarrados na cabeça cheio de pulgas e gritando 'Alá! Alá! Alá!' com a bunda pra cima!!

Mais uma vez, o silêncio.

Eram cinco homens na conversa, no entanto, o homem calado no fundo do balcão, olhos presos na TV que parecia não ter escutado uma só palavra porque não se importava, ergueu um olho. Girou a cabeça e voltou para a TV. As ruas estavam estranhamente silenciosas e vazias para a hora do dia. Um dia quente, sol brilhando. Porém, a TV era tudo. Passava o prefeito de Nova York, chovia miúdo lá, o prefeito tem uma capa descartável rosa, muito fina, mostra o terno cinza por baixo. Parou nos microfones disse várias coisas como ‘nossa cidade não será vencida’ etc. O velho calado assiste a tudo, rosto impassível, olhos secos, mãos no queixo, cotovelos na tábua avermelhada do balcão. Um copo de whisky ao lado, bala de hortelã, ao centro, um pires com um monte de amendoins. É tudo.

Você precisa escolher um lado, disse Solano meio que de provocação. Elias ergueu as sobrancelhas, esfregou as duas mãos na cara. Respirou. Estamos velhos demais, burros demais, falou ainda abafando a voz com as mãos sobre a face. Então se endireitou no banco, puxou a farta barriga, olhou o relógio no pulso. — Se Osama Bin Laden fosse um democrata e seus alvos fossem apenas militares, não gente inocente, mas políticos safados, empresários corruptos e militares, aí sim eu não teria dificuldade em escolher um lado... – Virou mais um copo.
— O quê?! você está dizendo que lutaria ao lado de Bin Laden?? ora, pelo amor de Deus, homem. Ele é um assassino, um monstro!!
— Orlando, se um cara entrasse à meia-noite na sua casa, matasse seus filhos, estuprasse suas filhas e sua mulher e saqueasse seus bens, roubasse os tesouros de seu país, você seria um monstro ao vingá-los?
— O que isso tem a ver com essa desgraça Elias? – Nestor, até então neutro, lança o dedo para as milhares de toneladas de lixo e ferro em combustão no centro de Manhattan.
— Ali debaixo tem milhares de mortos!! – Orlando apontou aos gritos.
— Esse é o limite. – concluiu Jairo. Nestor levou a mão pelos fios brancos, um monte aqui, outro ali. O centro da cabeça, a nuca e o alto da testa estão desoladamente vazios. Solano franziu a testa.
— Não parece, mas acho que você foi criança um dia, Orlando! – ele afastou-se para as mesas, levou uma cerveja. Elias continuou, a voz calma e o volume mais alto para cobrir a distância em que Orlando se esquivava. Atravessou a pista de dança, pulou umas cadeiras e o pequeno palco onde artistas locais, num banquinho e violão, cantavam músicas de uma geração triste que ficara para trás deixando a impressão de que nunca nada mudou. — Robin Hood! roubava dos ricos, dava aos pobres...
— Ora me poupe...
— Quem dá algo a pobres?? – protestou Nestor.
— Não, não é isso. Vou refrescar suas mentes secas, – o rosto de Elias ganhou um brilho, animou-se um pouco. — Robin Hood, lenda ou história, passou a roubar dos ricos e dá aos pobres porque o Rei Ricardo Coração de Leão foi para as Cruzadas no Oriente, lembram-se. Então seu irmão João ‘Sei Lá Das Quantas' apoderou-se do trono Inglês e estropiou o povo nos impostos, aí surge nosso herói Robin Hood para consertar as coisas até que o Rei voltasse e destituísse o irmão corrupto, e todos vivessem felizes para sempre!
— Prestaram atenção na historinha de hoje? – Jairo zombou, Orlando fingiu atenção na TV.
— Perceberam? Sabem onde o Ricardão, o rei, estava? nas ‘Cruzadas’... no Oriente Médio. Todo nobre cristão recebeu a graça da Igreja Católica para ir ensinar aos pagão-mulçumanos como viverem e adorarem Jesus Cristo. Atrás do muros de Jerusalém se deu a maior carnificina até então cometida por motivos religiosos. Cercaram-na por uma eternidade porque estava em mãos ‘infiéis’, segundo a nobreza ocidental. Quando por fim, os cruzados entraram na cidade foi um banho de sangue. A matança durou dias e noites. Crianças, mulheres, velhos, animais, todos trespassados por lanças e espadas que defendiam a Sagrada Fé do Novo Cristianismo. Por dias jorrou sangue pelos cantos das ruas como enxurradas da chuva. E não foi a única cidade a ser ‘salva’ pelos Cruzados... – Elias suspirou fundo, dizia aquelas coisas, mas na verdade não queria dizer nada. — É isso, Robin Hood pode ser lenda, mas as Cruzadas não foram historinhas da carochinha. Aconteceu de fato! – e concluiu com a voz grave e o dedo socando o balcão — E pelos séculos, tomaram a África de ponta a ponta. Cada povo, cada cultura, nada ficou intocado. Dividiram, exterminaram, criaram países, traçaram fronteiras, coroaram e derrubaram reis e governos. Escravizaram, saquearam e assassinaram tudo que puseram as mãos até os dias de hoje. Portanto amigos, os Saddam Hussein, os Khadafi, os Khomeini, os Osama Bin Laden são fanáticos e assassinos, mas são crias do ocidente!

Mais uma vez, o silêncio.

Depois de um tempo, Jairo voltou à carga. — Mas desta vez eles descumpriram o acordo: ultrapassaram os limites!
— Ah! para com isso! que acordo? que limite? Esses caras são assassinos cruéis, acreditam que se morrerem vão viver eternamente, não tem como lutar contra isso usando o bom senso, acordos, leis...
— Mas a Lei do Limite é fato científico... – Jairo insiste mais uma vez. Orlando torce o nariz, vira a cadeira de frente para a porta, olha a rua praticamente sem movimento, as costas voltadas para a TV e os amigos. Solano foi ao fundo do bar, inventa um serviço qualquer para não ouvir o que considera 'besterol', de novo. Mas Nestor e Elias mostram-se interessados. — Todos nós temos um Limite. Tudo tem um Limite. Isso é que é incrível na psique animal!
— Uai! pensei que estava falando de gente... – Solano debochou lá do fundo.
—... aceitamos até certo ponto qualquer desagravo, qualquer situação ruim. Um animal tem um perímetro físico de aproximação... só ultrapassam esse limite, sem briga, os íntimos. É assim entre as pessoas e as suas entidades de forma geral. Nós, seres vivos, temos umas... ‘chaves’ instintivas e outras culturais que estabelecem nossa relação com o mundo exterior e interior. O meio social estabelece o Limite cultural de todas as nossas demais contingências...

O professor aposentado no fim do balcão e olhos na TV que até agora não tinha dito nada, emitiu aquele som irritante de uma garganta se limpando no banheiro pela manhã. Voltaram-se para ele. Jairo calou-se, o homem falou pela primeira vez.
— Então você,  –  disse ele —  acha que os terroristas ultrapassaram um Limite? vai concluir que carros-bombas e homens-bomba em portas de hospitais e em escolas estão dentro do Limite?
— É isso amigo! você entendeu! – Jairo ergueu o copo de whisky, sorriu sem graça.
— Com cinco ou sei mil mortos eles ‘passaram dos limites’? por isso vai haver guerra mundial?
— Não vai haver guerra nenhuma! nada além do que já temos. – Elias corrigiu impaciente.
— Então é isso? – o ex-professor desdenha. — Bushinho vai retaliar porque Osama e sua turma passaram da conta?
— É. Exatamente isto! – disse Jairo de pé no centro do bar. — Vão arrasar o Afeganistão mais ainda, vão tirar os idiotas do Taliban do poder, provavelmente vão recolocar aquele rei imbecil de 80 anos de idade e que já tem uns 30 que fugiu de lá, e tudo vai voltar ao que era... ou seja: miséria, miséria e mais miséria. Este é o limite daquela gente, e o nosso são dez ou vinte mortos por atentado...
— Não diga bobagens, – sorriu de lado o dono do bar. — ainda tem gente neste mundo de bom coração, boa índole,  – recolheu alguns copos abriu a torneira na pia. Fala de costas, acompanha o rosto das pessoas no espelho no alto sobre a água da pia. Ao lado, numa posição privilegiada a bandeira do América Futebol Club.
— Mas e daí? – provocou o ex-professor que hoje está um tagarela.  — Já vimos tudo isso acontecer, depois de um tempo volta tudo ao normal.
— Você quer que volte ao normal? – inquiriu Elias áspero, Orlando, quase fora do bar, voltou empurrando as cadeiras com estardalhaço.  — Sabe o que eu penso, disse, quero que tudo exploda numa guerra e morra essa gente toda junto. Taliban, Bin Laden, Bush, os Khomeinis da vida, o FBI, a CIA, todos. Quero que todos se danem! São todos farinha do mesmo saco!!
— De certo modo você tem razão. – ponderou Nestor. — Os Estados Unidos querem vingança, mas vão esperar a economia se recuperar do susto...
— Por isso nenhum tiro até agora?
— Mas e se Osama Bin Laden fizer outros ataques desses ai? matar mais cinco, dez mil pessoas com avião ou um vírus qualquer, sei lá! – Solano, sai de trás do balcão, assenta-se na mesa onde Orlando e Jairo bebem agora olhando um nos olhos do outro.

Aí amigo, disse o velho Jairo puxando um trago, as costas jogadas no respaldo da cadeira, as espirais de fumaça flutuando ao ventilador no teto: fica estabelecido um novo limite. Nós não mais perderemos nenhuma noite de sono ou ficaremos perambulando por aí desnorteados por reles cinco ou dez mil mortos. Como já não ficamos por dez ou vinte cidadãos apenas. Mas perderemos o sono por 100 mil talvez ou 1 milhão, quem sabe...

Mais uma vez, o silêncio.

 

   







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