QUANDO A VERDADE
CONHECEU A MENTIRA

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a imagem é composição de hh sobre "A Verdade saindo do poço" - 1896  Jean-Léon Gérôme - pesquise pelo original.
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Quando A Verdade Conheceu A Mentira
crônica
revisão Nataniel Castro Nunez
editoração Ferdinando Blun
edição
hh



Nesses tempos em que a Verdade tem várias interpretações de acordo com o ângulo em que é observada, ou como preferem, tem ‘Meias Verdades’ ou ainda ‘Cada um tem a sua Verdade'... na verdade são todas mentiras vestidas de verdade. Muitas vezes aceitas como absoluta verdade, como por exemplo, uma reta curva. Pode?

Sim, na matemática, em tese, mas na vida real reta curva é uma mentira equidistante da verdade. É curva ou é reta, porque uma reta não faz curva, se o fizesse chamar-se-ia Curva... ou seja, dois + dois é igual a quatro. Não cinco ou outro resultado, mas quatro.     

É um dilema humano desde os primórdios. A Mentira já aparece em contos tribais e rituais místicos antes da escrita, protagonizados por inúmeros personagens, humanos e não humanos, como a serpente da Bíblia que na vida real também usa da mentira para sobreviver. A serpente se disfarça com as cores disponíveis no seu meio ambiente, mentindo que é folhagens e ramos para pegar desprevenidas suas presas, assim como outros no mundo animal, e infelizmente, na humanidade também. Infelizmente, porque no caso dos animais é uma questão de sobrevivência alocada pela evolução, mas no Homem, pode ser pela Paixão e pela Ambição, pilares tanto da Verdade como da Mentira.         

O alerta chega às pessoas, à humanidade, há milênios e ao que parece pouca gente percebeu os sinais e quase ninguém coloca a Verdade na sua dose diária de atitudes pela vida.


A Verdade contra a Mentira é um assunto tão pertinente nos dias de hoje em que pessoas de discursos opostos acabam agindo do mesmo modo. Onde está a mentira então? Como as palavras podem ter tantos significados diferentes e até antagônicos nas bocas das mesmas pessoas e com iguais sentidos nas frases de adversários? Como é possível que se diga e se prometa tantas coisas com palavras que não dizem nada, ao mesmo tempo que prometem tudo e não fazem nada do que parece que disseram que fariam?       

Para tentarmos entender essa milenar estratégia de enganar visitaremos três versões de um conto judaico que trata dessa peleja. Três, das muitas que vicejam por aí, de um conto tão antigo quanto o próprio dilema da Verdade contra a Mentira.


O primeiro nos conta que a Verdade e a Mentira se conheceram um dia. A Mentira diz à Verdade: está muito bonito hoje’. A Verdade olha à volta, olha o céu, o dia está realmente bonito. A Verdade vê que nisso a Mentira não mentiu. Seguiram juntas até chegarem a um poço onde a Mentira diz à Verdade: A água está muito agradável, vamos tomar banho juntas?’

 

A Verdade mais uma vez desconfiada põe a pontinha do pé na água, é, realmente está agradável e refrescante. Decide tirar suas roupas, entrar no poço e nadar onde a Mentira mais do que depressa já se havia despido e se jogado fazendo grande alarde de como a água estava maravilhosa.


De repente, a Mentira sai da água, se veste com as roupas da Verdade e foge. A Verdade fica furiosa sai do poço procurando por todos os lados encontrar a Mentira e recuperar suas roupas. Mas a essa altura, a Mentira já andava longe.          

O mundo vendo a Verdade nua vira o olhar com desprezo e raiva.


A pobre Verdade volta para o poço e desaparece para sempre escondendo a sua vergonha. Desde então, a Mentira viaja pelo mundo vestida como a Verdade, satisfazendo todos que não querem em nenhuma hipótese aceitar a Verdade, muito menos, nua.


Outra versão nos conta um final um pouco diferente.

 

A Mentira chegou à Verdade sempre sorridente e festiva, Bom dia dona Verdade!

E a Verdade foi comprovar se realmente era um bom dia. Era realmente um lindo dia.

— Bom dia, senhora Mentira.

— Está muito quente hoje... – continuou a Mentira.

De fato, a Verdade vendo que a Mentira foi sincera, relaxou-se. A Mentira, então, a convidou para se banharem em um rio ali perto. Tirou a roupa, pulou na água. — Nó!! que delícia!

A Verdade sem hesitar tirou suas roupas e pulou no rio, a Mentira na mesma hora saiu da água, vestiu-se com as roupas da Verdade e saiu correndo.       
Vendo que foi enganada, a Verdade decepcionada e triste, recusou-se a vestir as roupas da Mentira e saiu desnuda caminhando de cabeça erguida pelas ruas do mundo.       

A Mentira, vestida de Verdade, fez sucesso. Foi ovacionada e glorificada por todo o mundo. Ganhou cegos seguidores, devotos, fiéis, tietes e bilhões de curtidas por todos os continentes.
Enquanto que a Verdade nua e crua tornou-se horrenda, abjeta, imbecilizada e inaceitável.

Foi violentada, brutalizada e ridicularizada.

Tratada como grotesca, antissocial e desequilibrada foi expulsa das cortes, dos tribunais, dos púlpitos, dos palcos, dos palanques, dos altares, dos lugares ricos e dos lugares pobres, e por fim, foi expulsa dos corações.

 

Então, chegamos a essa última versão da Verdade contra a Mentira e da Mentira contra a Verdade.


Num belo dia, depois de muitos e muitos anos de exílio, a Verdade decidiu visitar a humanidade, sem roupa e sem adornos, tão nua e descoberta como uma verdade pode ser, para ver o que tinha melhorado nas pessoas.

 

Todos ao vê-la, de imediato e como antes, lhe viravam as costas de vergonha, de ódio, de nojo, ou de medo. O mundo queria que a Verdade continuasse bem longe e enterrada.

 

Ninguém lhe desejava boas-vindas.

Ninguém deixava que entrasse em suas casas.

Ninguém lhe oferecia um copo d’água.

 

Assim, a Verdade percorreu os confins da Terra sempre criticada e rejeitada.

Porém, numa tardinha bem ao pôr do sol, abalada e triste, encontrou a Mentira passeando alegremente em belos trajes esvoaçantes e brilhantes com vistosas joias e a face maravilhosamente maquiada numa elegância de dar gosto. Vendo a Verdade naquela situação quis saber o que se passava.

— Verdade, amiga! Por que você está tão abatida?

— Porque me sinto feia e antipática. As pessoas me evitam e me xingam tanto!

— Que absurdo! – gargalhou a Mentira. — Não é por isso que as pessoas te evitam. Toma aqui. Veste minhas belas roupas e verás o que acontece!

 

Então, a Verdade se montou com as lindas vestes da Mentira. Como num passe de mágica, da noite para o dia, passou a ser bem-vinda e festejada em todos os lugares.

Agora é aclamada e respeitada. As pessoas se curvam ante a Verdade vestida de mentiras.

É recebida por reis e pelo clero, juristas, delegados, generais, príncipes e princesas, amarelos e pretos, vermelhos, brancos e azuis. Todos passaram a adorá-la e a defendê-la com a própria vida se fosse preciso.

 

E a Verdade voltou aos mesmos rincões da Terra por onde antes fora desprezada e expulsa, só que agora travestida de ‘meias verdades’ ou ‘umas pequenas mentiras inofensivas’ foi abraçada e protegida. Andou por pocilgas, senzalas, favelas, meretrícios, academias, templos, catedrais e palácios suntuosos sempre bem recebida e amada.  

Tempos depois, em visita ao mesmo local onde um dia conhecera a Mentira, a Verdade se despiu e se banhou naquelas mesmas águas límpidas e deliciosas por onde eternamente, dia após dias, correm pelos rios, abastecem os poços e deságuam no oceano.

 

A Verdade ficou ali por horas sentada na margem do grande rio, ouvindo o som dos pássaros, do vento e do correr das águas a lhe tocarem mansas e refrescantes o colo, as pernas e seus pés. Em silêncio, pensativa, cabeça baixa, ar melancólico rabiscava com os dedos a superfície da água, perdida em suas reflexões.    

De repente ouviu um alarido de vozes, risadas e gritinhos, música e dança. Era a Mentira, sempre linda, bem vestida e sorridente que chegava com seus seguidores que nunca a abandonavam. Andavam sempre com a Mentira aonde quer que fossem. E tudo sempre muito alegre, colorido, festivo, explicado e justificado em perfeita ordem. Dar explicações longas e extenuantes, dar belas e barulhentas festas, era com a Mentira. Ninguém nunca fez ou faria melhor.

— Sabe o que agora andam falando sobre mim por aí? – disse a Mentira à Verdade erguendo os braços ordenando ao seu séquito que ficasse quieto e em silêncio.

 

A Verdade estranhou aquilo. A Mentira sempre fora muito educada e gentil. Dizia sempre ‘Bom dia’ ‘Boa tarde’ Boa Noite’ ‘Por obséquio’ ‘Obrigada’ e ‘Com licença’. O que acontecera para que esquecesse os bons modos?

— O que andam dizendo?

— Cantam por aí em versos e prosas que eu tenho as pernas curtas! Você acredita nisso? Olha para as minhas pernas!

A Verdade olhou as pernas da Mentira. Eram lindas e saudáveis. Maravilhosas.

— Mas por que estão dizendo isso?

— Posso te contar um segredo? – sorriu maliciosa a Mentira. — Eu mesma espalhei essa!  kkkkk

A Verdade a olhou espantada. — Mas por que você faria uma coisa dessas consigo mesma?

— Para os tolos e ingênuos ouvirem dos maldosos e canalhas. Eles têm que acreditar que eu não posso ir longe!!  kkkkkkkk

 

A Verdade baixou os olhos mirando a água com tristeza.

— Mas, e você? – perguntou a Mentira. — Por que ainda tem esse semblante taciturno? Esse olhar caído? Não é hoje tão amada e bem quista por onde passa? Todos não se ajoelham perante você e a idolatram como uma deusa? Por que está ainda tão insatisfeita?

Estando mesmo desolada a Verdade se abriu. — É que vestida com suas roupas eu só atraio um tipo de gente. Eu, a Verdade vestida de mentiras, só atraio os Tolos, Ingênuos, Malfeitores e Canalhas! Ou seja, vestida com suas roupas eu só atraio os bobos e a escória!

— E o que isso importa, minha querida? – disse a Mentira deslumbrada com o seu próprio sucesso. — São esses aí que me dão o poder! São esses que se arrastam em multidões atrás de mim! e me fazem ser a Rainha das Rainhas, a Deusa das Deusas da Deusa que eu sou!!!

— Mas é justamente esse o tipo de gente que eu quero evitar. É essa gente que eu quero desmascarar e impedir que com suas atitudes continuem causando tanto mal ao mundo! Sinto muito Mentira, mas não posso continuar usando as suas roupas!

— Pense bem no que você vai fazer! – ameaçou a Mentira.

— Já me decidi! De hoje em diante nunca mais vestirei suas roupas! Toma pode levá-las!

— O quê?!! Sua Ingrata!! – esbravejou a Mentira. — Você vai voltar a ser aquela coisa insignificante que era antes de me conhecer! Vai voltar a ser escorraçada em todo lugar e por todo o mundo! Aí quando você estiver de novo no fundo do poço, não me venha procurar porque eu não te ajudarei! Nunca mais!!

 

Assim, a Verdade, após se lavar em águas cristalinas, abandonou de vez as roupas da Mentira e saiu pelo mundo sem se envergonhar de sua nudez, pois a nudez é a verdade natural do seu ser. Ela não mais se via infeliz, ridícula ou tola, se sentia viva e forte.


Desde então, a Verdade, com seu sorriso sereno vaga pelo mundo permitindo se encontrar pelas pessoas de atitude honrada e que prezam a Justiça.


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a imagem é a adequação de hh à censura de nús no Facebook, sobre a obra "La Vague - 1896  William-Adolphe Bouguereau" - pesquise pelo original.

 

  

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