Comandante
Kolins Kruvt atravessou o tombadilho com o cachimbo pendendo nos lábios. Desceu
sem pressa,
caminhou
pelo convés
inferior, se debruçou no aço morno da amurada. O sol se pôs há meia hora
deixando no horizonte o rastro vermelho que ainda tinge as nuvens do centro e
cobre de rosa todo o céu ao sul. As águas, calmas e escurecidas atiram espumas
contra o casco. O velho barco navega sóbrio, lento. Algumas gaivotas ainda
arriscam a última pesca do dia.
Com. Kruvt - que os marujos angolanos chamam de ‘Mister Crúveti’ - está
particularmente pensativo nesse fim de tarde. Falou pouco o dia todo, não
almoçou junto aos outros, como é seu costume, e agora à noitinha, tem o olhar
fixo no horizonte e um semblante acinzentado.
— Qual é o problema,
meu velho amigão? – Verger o imediato chegou sem ser percebido, interrompeu seus
pensamentos.
Kruvt respirou fundo antes de responder. — Velho? – sorriu — Tenho três anos a
mais que você, rapaz. E daqui, você não me parece exatamente um jovem.
— Mas o quê que há? Que
mau humor é esse? Parece cansado...
Ok, faremos uma última entrega e vamos descansar uns dias na Jamaica, certo?
Mulheres, drinques, mulheres, sol, mulheres, terra firme, mulheres... o que você
acha? heim??
— É, pode ser...
— Ora vamos!
Anime-se marujo!!
— Ok! Jamaica!! –
ergueu os braços ao norte, na direção do Caribe. Riram. Verger retirou-se à
cabine, porém notou que a face do comandante continuou selada e que concordara
muito rápido com sua ideia da Jamaica. Para alguém que disse 'pode ser' tão
sério, o comandante se entregou muito cedo, talvez quisesse continuar a sós.
Verger parou por um segundo, voltou o rosto para o velho amigo debruçado sobre o
mar com o semblante calmo e enigmático. Avalia se deveria estender a conversa ou
deixá-lo em paz com seu mau humor... O vento manso arrasta pelo barco o olor do
cachimbo;
o céu,
agora
vermelho, vai ao fundo quase sem nuvens. Não sabia de outro comandante melhor,
mais experiente, mais corajoso e que conhecia as águas do planeta como a
banheira de sua própria casa.
Verger em silêncio, sem ser notado fez uma reverência batendo dois dedos à
testa, se retirou.
O dia amanhece com cinco pancadas de mão pesada na escotilha.
Verger dá um salto, sai nu da maca, abre. Kruvt parou de lado entre a porta e o
corredor, meio corpo dentro, meio corpo fora.
Vista-se, ordenou seco.
— Como assim?
Algo errado? – espiou pelas escotilhas enquanto apanhava as calças no armário.
Avistou terra a estibordo.
— O quê? onde estamos?
— Mudei de ideia.
– disse frio, como quem ainda não revelou o pior. — Vou passar uns dias aqui,
você assume o barco.
— Como assim? Que
lugar é esse?
Devíamos estar em mar alto no mínimo pelos próximos seis dias!
—
Granada.
— O quê?!!
Devíamos estar do outro lado Kruvt!! o que deu em você? Temos 26 milhões de
dólares em mercadoria no porão e mais 16 milhões nesses contêineres! Não podemos
nem andar pelo convés! O que está acontecendo?
— Acalme-se. Não
vamos nos atrasar dessa vez...
Verger olhou em volta, reconheceu as montanhas, as praias, o porto. — Granada! O
que viemos fazer aqui?
— Não tenho tempo
para explicar.
— Vamos perder
esse contrato...
— A entrega será
feita normalmente na data prevista. Não haverá atrasos.
— Claro que não,
porque se isso acontecer podemos perder o navio para as seguradoras! – afivelou
as calças, saiu atrás do comandante calçando as alpercatas, abotoando a camisa.
— Para aonde você vai?
— Desembarcar.
— Ei, espere um
pouco, – Verger segurou-o pelo braço. — Explique essa coisa direito... por que
está descendo aqui? Espere pelo menos ancorarmos. As águas desses portos não são
bentas...
— Eu sei, mas
quero evitar a aduaneira...
sem tempo.
— O quê? Vai
descer ilegal? Kruvt, me diz o que está acontecendo!? Você nunca agiu assim...
sou seu parceiro por mais de trinta anos, acho que mereço pelo menos respeito!
Kruvt detém-se na escada de desembarque a estibordo.
Estão a uma milha e meia da costa.
Embaixo uma lancha aguarda, soca no costado do barco ao sacudir das ondas.
—
É meio embaraçoso... – disse Kruvt aos murmúrios. Verger aproxima-se para
ouvi-lo. — É um assunto extremamente pessoal... espero que entenda.
— Não, Kruvt, eu
não entendo! – vociferou o imediato. — Qual é o problema?
— Verger... –
pausou Kruvt, a face erguida para o céu procurando palavras na brisa. — estou
cansado. Tenho 58 anos e passei 44 num convés. Isso é mais que uma vida.
— O que está
dizendo, Kruvt? – foi como um raio lhe cortando a cabeça.
Verger por fim entendeu o que se passava ali. É inacreditável. Seu ‘capitão’,
seu ‘herói comandante’, seu amigo, dizia adeus. O coração dispara, gotas de suor
brotam entre os fios de cabelo, escorrem na testa. Por pouco não perde a voz. —
É... vamos falar disso no comando... aqui fora não. – gorgolou. Na lancha
embaixo uns marujos descem bolsas e sacolas.
— Verger,
entenda. Eu não vou mudar de ideia. Por isso não lhe disse nada antes. É uma
decisão pessoal. Pensei muito nesse assunto. Estou cansado de tudo. – Kruvt
respira fundo de novo e impaciente, sem se mover. — Não é como se eu estivesse
te abandonando. Você será sempre bem vindo e poderá ficar o tempo que quiser.
— O quê?! –
Verger continua não acreditando nas palavras que juntas formavam frases que lhe
escapavam da natureza do crível. A cabeça dava voltas e ancorava na mesma doca.
— Kruvt! Que isso? Dê uma olhada! Granada é o fim do mundo! É Terceiro Mundo ou
seria até pior se pudesse. Não tem 100 mil almas nestas malditas ilhas! E a
maioria dessa gente há poucos anos devorava uns aos outros na África! Você não
vai ser feliz aqui!
— Como sabe?
— Ora Kruvt, eu
te conheço como a um irmão. Quantos anos estamos juntos? heim? Eu cuido de você,
você cuida de mim... hã?... Qual o problema? É dinheiro? eu poss...
— Não preciso de
dinheiro. Tenho mais que o suficiente.
— Então é um homem
rico?! – sapecou à queima roupa sem permitir que o homem terminasse sua frase. —
Pois tenho uma notícia ruim para te dar Kruvt: você não é rico! Uns poucos
dólares nas Canárias não faz de você um homem rico. E se fosse? Aonde iria
gastar nestes lixos de ilhas? Aqui é o fim do mundo!
Nem lojas decadentes eles têm, cara! Tudo aqui é arapuca pra turistas de
terceira! Quer gastar? Vamos pra Vejas, Mônaco, Amsterdam!!
A
conversa passou do volume normal aos berros de Verger. A tripulação de onze
homens abandonou as olhadelas discretas para entreolharem-se surpresos pela
tensão e gritaria. Jamais tinham presenciado algo assim entre os dois.
Com. Kruvt deu as costas, mirou o horizonte, exalou uma frase quase inaudível
encoberta pelo arfar das ondas. — Parece que você sabe "tudo" a meu respeito,
não é?
— Olha amigo,
eu... eu não quero brigar com você. Me desculpa. Mas é que eu acho tudo isso uma
loucura. Trabalhamos mais de 30 anos para pagar esse barco e agora, no final de
tudo, você larga assim sem mais nem menos? O que está acontecendo, meu Deus?
—
Foram 36 anos, Verger! 36 anos eu e você...
—
Então o que mudou? Ainda somos os mesmos jovens loucos de São Petersburgo!
Lembra-se?
— Aquilo? ainda
estou tentando esquecer... – murmurou.
— E Veneza?
Éramos os reis de todos os bordeis! Quer esquecer isso também? Você tem três
casas em três continentes, carros, lanchas. Você tem até um aeroplano, Kruvt!...
– passou os dedos abertos pelos cabelos da testa ao topo da cabeça, respirou,
virou-se para o mar, pensou por um alguns segundos, retornou num tom e volume
mais baixos. — Kruvt, passamos bons e maus momentos juntos. Sofremos, mas
vencemos. Hoje não somos apenas sócios. Somos irmãos! Somos uma família aqui!
Crescemos juntos, conquistamos tudo isso juntos. Com muita luta! Somos Irmãos! e
bem sucedidos!!
O olhar de Kruvt está no vazio, frio. O semblante tem a cor do aço. As rugas
profundas marcam todos aqueles anos e cada dia de trabalho duro. Aquele olhar é
também duro. A lancha ainda aguarda.
— Preciso ir.
Você leva o barco, cumpre o contrato.
— Eu não posso
conduzir esse gigante, não tenho documentação para isso. – apoiou as costas na
amurada em busca de muletas. Cruzou os braços ao peito como uma criança
emburrada. — Mas posso contratar alguém, é claro. – fez uma pausa, olhou o rosto
do amigo. Sentiu uma segunda pontada no coração. A coisa era muito mais grave
que parecia. — O que mudou Kruvt? Sempre confiamos um no outro. O que aconteceu?
Pelo amor de Deus, homem, me conta!!
Kruvt move-se para a escada do portaló a tomar seus degraus à lancha. Marolas,
vez e outra, rebelam-se engrossando a pele das águas a castigarem o costado da
embarcação, mas voltavam em seguida à calmaria.
O velho comandante já no vão do portaló encarou Verger que trazia a face
mais vermelha que o normal, franzia a testa, as pálpebras semicerradas e o canto
dos lábios bem secos.
O comandante mira seu rosto procurando um jeito de dizer coisas
desagradáveis sem parecer um fuzilamento. Apesar do esforço, deixa transparecer
piedade e raiva.
— O que
aconteceu? O que mudou? Talvez você queira mesmo saber. – Verger estremece, o
último fiapo de esperança lhe escapa naquela voz grave soando como um epitáfio.
Mas ainda não podia crer. Seja o que for, não pode ser tão grave a ponto de
encerrar um companheirismo e uma sociedade de quatro décadas.
Kruvt olhou a lancha embaixo da escada e de novo para o rosto de Verger.
Prepara-se para uma conversa desgastante - e inútil - que preferiria descartar.
— Acho que tudo começou nesta carta... – o comandante por fim se decidiu. Tirou
do bolso um envelope amassado. Suas mãos vacilaram inseguras. Era mesmo o melhor
a fazer? Verger empalideceu ao reconhecer o papel da carta. O vermelho da cara
corou-se num carmim fechado e abrasivo. O coração quase saiu pela boca, aí
disparou.
— É isso?! Esta é
a causa dessa loucura? Vamos Kruvt! Ela era uma prostituta! Uma Prostituta! Meu
Deus!! Isto é chan-ta-gem!!
— Chantagem
Verger?
— Como uma
prostituta pode saber quem é o pai do filho? Kruvt tenha juízo pelo amor de
Deus!!
— Quantas dessas
cartas você recebeu?
— Não sei...
— Quantos
telefonemas?
— Não sei...
— Quantas vezes
ela quis subir a bordo? Em quantos portos ela nos esperou? Há quanto tempo você
esconde isso de mim?
— Não sei, não
sei! NÃO SEI!!!
— Você é meu
‘irmão’ Verger, ‘sabe tudo’ sobre mim.
— Eu fiz isso para te
proteger. Você é sentimental, confia fácil nas pessoas. É lógico que ia cair
nessa. Eu tinha que te proteger!
— Eu nunca lhe
permiti se intrometer na minha vida... não dessa forma! Isso é pessoal! É
íntimo! Você não tinha o direito! Eu poderia ter pelo menos averiguado. Ir
vê-la, ouvi-la. Mas você tirou isso de mim.
— Para o seu
próprio bem! Seu ingrato!! Você deveria era me agradecer por te livrar de uma
puta preta com uma criança no colo! Olhe para você, Kruvt! Branco, olhos azuis!
Um polaco cheio de dólares, dono de um navio quase do tamanho dessa maldita ilha
e um velho solitário! Ponha isso na cabeça marujo! Você não é um bom partido!
Você é um alvo!! Se dê conta disto e me deixa em paz!!
— Esse é o
problema Verger. É tudo o que temos. – Kruvt alargou os braços, cingiu as quatro
direções. — O que você vê? Um navio, nada mais... é o que temos... Por que você
não volta para casa Verger? Você que tem tantas casas e apartamentos em tantos
lugares. Por que você não volta para algum deles? Sabe por quê? Sabe por que
você não volta, Verger? Porque você não tem ninguém te esperando! Você tem
casas, mas não tem um lar. Você não tem ninguém que te ama! Ninguém que valha a
pena voltar... Só esse maldito oceano... ele tem tudo, tem a nós dois! e tem o
barco!
Kruvt tenta se acalmar numa pausa longa. Recompõe-se, pousa os olhos sobre o
olhar úmido de Verger. — Hoje... para mim basta. Você estava protegendo sua
metade do barco. Tudo bem. Ele é todo seu agora. Todo ele... pode ficar com
tudo! Faça o que quiser. Complete a viagem, venda ele... eu estou fora! Não
quero levar disso aqui nem um mísero parafuso! – colocou o pé no primeiro degrau
de ferro da escada, a lancha embaixo.
Verger torceu o queixo num velho hábito de desdém. — Tudo isso por causa de uma
puta... Você é um otário Kruvt!
O comandante esboçou um sorriso. — Você não entendeu nada não é?... Ela não era
uma prostituta, e mesmo que fosse não mudaria nada. Quanto à criança, hoje é uma
moça. Uma bela moça! Formada, inteligente, livre... e eu não pude vê-la crescer
e se tornar a pessoa que é. Perdi isso para sempre. Você me tirou isso... mas
decidi não perder mais nada. – apoiou o pé no segundo degrau, voltou-se e disse
casualmente. — Sorria Verger, você continua dono do barco e dos mares... você
continua com o mundo nas mãos, não é? – desceu a escada, tomou a lancha.
O rastro das hélices rasga a crista
das ondas até o quebra-mar. Contorna as pedras dirigindo-se à praia. O navio faz
uma grande curva. Sua mancha negra circunda o horizonte que brilha intenso
naquela manhã. Posiciona-se a oeste, rumo ao coração do oceano.
Verger volta os olhos para as areias quentes da praia. Pôde ver a lancha invadir
as areias. Kruvt salta, joga para fora as sacolas e bolsas.
Duas silhuetas femininas correm em sua direção, lhe abraçam, rodopiam na areia.
O dia está lindo, o céu, o mar. A manhã cintilante coroa aquele reencontro.
Verger torce o queixo, dá as costas, ordena que os motores avancem mar adentro.
Deixa para trás Granada, suas praias idílicas e suas montanhas com o perfume de
eterna aurora...
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